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terça-feira, 5 de outubro de 2010

O título e a empulhação

Democracia é muito legal, mas confesso que fico assustado com o nível de desonestidade intelectual que a campanha eleitoral faz aflorar. Não se trata aqui dos spams com calúnias contra este ou aquele candidato, mas da maneira como situações são distorcidas à base de sofismas. Nesta campanha, o melhor exemplo é a polêmica em torno da ação do PT no STF contra a obrigatoriedade de o eleitor apresentar o título e um documento oficial com foto na seção eleitoral.

Uma parte da crítica à ação é pertinente, sim. A lei que previa essa dupla apresentação foi aprovada pelo Congresso e sancionada por Lula há mais de um ano. Se o partido era contra, podia ter barrado a aprovação, pressionado pelo veto ou entrado na Justiça muito antes, evitando criar uma celeuma jurídica às vésperas da votação.

Agora, o grosso da crítica, afirmando que a derrubada da dupla exigência facilitaria fraudes e/ou tornaria inútil o título de eleitor, é mentira. Uma mentira repetida à exaustão por quem tinha algo a perder (vale lembrar que o DEM também foi ao STF manter a obrigatoriedade dos dois documentos e, segundo a Folha de S.Paulo, o próprio José Serra teria ligado para o ministro Gilmar Mendes para pedir a interrupção da votação do Supremo) e reproduzida por uma enorme quantidade de pessoas por ignorância ou cumplicidade na má-fé.

E por que se pode dizer que a crítica é sofista? Porque o título de eleitor só se tornou obrigatório para votar a partir da aprovação da dita lei, no ano passado. Até então, pelo menos desde 1986, quando foi adotado o atual formato do documento, ele não era necessário. Se o cidadão estava sem o título, mas sabia onde era sua seção eleitoral, bastava chegar lá com um documento de identidade com foto e votar. Políticos, advogados de partidos e a maioria dos jornalistas especializados sabem disso, incluindo os que fizeram coro à critica.

O título de eleitor não é um documento de identificação, não tem foto nem digital. Ele é um comprovante de que o cidadão está inscrito na Justiça Eleitoral. Ele não prova sequer que o portador está em dia com a dita cuja – tanto que, para tirar passaporte ou ser contratada num emprego público, a pessoa tem que levar também os comprovantes de votação.

Até as eleições de 2008, o eleitor podia votar apresentando somente o título, uma herança do tempo em que o documento tinha foto do cidadão. Na falta do título, valia qualquer documento com foto. Era aí, na possibilidade de só usar o título, que morava a fraude na votação – a fraude na apuração foi eliminada pela urna eletrônica. Como raramente os mesários conferem a assinatura, era possível uma pessoa votar com o título de outra.

Embora esse tipo de fraude jamais tenha sido maciço, ele justificou a adoção pela Justiça Eleitoral do sistema de cadastro biométrico, testado em 2008 e implementado em alguns municípios este ano. Nele, o eleitor faz um novo cadastro, incluindo a coleta das impressões digitais e de uma foto. O título – que, como já foi dito, é só um comprovante do alistamento – continua o mesmo, mas foto do eleitor está na lista de votação e suas digitais estão no sistema. Para liberar a urna para o voto, o cidadão vai tascar o dedo num sensor. Será humanamente impossível uma pessoa votar no lugar de outra. O problema é que o sistema só estará implementado no país inteiro em 2016.

Para minimizar o risco de fraudes até lá, surgiu a proposta de tornar obrigatória a apresentação de um documento de identidade com foto na votação. A malandragem enfiada na lei (não sei quem foi nem de qual partido era) foi atrelar a exigência do título simultaneamente. Ora, o título de eleitor não é um documento de uso corriqueiro. Salvo para exigências legais, fica guardado durante dois anos, sendo facilmente esquecido, perdido em mudanças etc. Basta ver a fila para tirar segunda via quando o prazo para isso termina – mau hábito do brasileiro.

Exigir que o eleitor leve qualquer documento oficial de identidade com foto para votar é ótimo, garante segurança ao pleito enquanto a biometria não vem. Já exigir que ele leve dois documentos só tem como resultado dificultar o exercício do voto. E isso vai na contra-mão de toda a filosofia inclusiva da legislação eleitoral brasileira.