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terça-feira, 6 de maio de 2003

Insensível e certeiro

Gente, uma das coisas que eu queria evitar no blog era ficar reproduzindo artigos. Mas como no Globo a coluna some quando sai a seguinte, resolvi botar aqui o texto de Artur Xexéo que saiu no domingo passado. Como sou um sujeito extremamente chato e cri-cri, desconfio de todas as unanimidades que os coleguinhas que cobrem cultura elegem periodicamente. Neste texto, Xexéo demole o novo “queridinho da temporada”, o documentário “Nelson Freire”, e, de quebra, manda uma raquetada na turma que vem glorificando o filme. Artigo ótimo para “civis” e delicioso para jornalistas – a menos que a carapuça caiba, hehehe.

Te cuida, 'Carandiru'

Insensível. É assim que eu me sinto a cada crítica que leio sobre o documentário da hora. Insensível. É o adjetivo que os colegas que me rodeiam parecem jogar na minha cara cada vez que comento o filme do momento. Insensível. Cada tecla do piano de Nelson Freire parece me acusar. Mas não tem jeito. Digo a verdade: "Nelson Freire", o documentário, é chato à beça.

"Um elogio ao recato", define a propaganda. Bem, um elogio ao recato não precisa ser necessariamente recatado. No caso de um documentário, por exemplo, recato é até defeito. Que Nelson Freire, o pianista, é tímido e recatado, até os porteiros do Teatro Municipal sabem. O que aprendemos agora é que estes recato e timidez são contagiosos. Contagiaram, por exemplo, o cineasta João Moreira Salles que fez um filme sobre o nada. Como o seriado de TV "Seinfeld". Só que sem o humor de "Seinfeld". Tire o humor de "Seinfeld" e veja o que sobra: o tédio. Pois é. "Nelson Freire", o documentário, é por aí.

Confesso que quando os créditos iniciais estavam sendo exibidos, fiquei até animado. Enfim, um filme brasileiro sem Walter Carvalho na ficha técnica. Isso não é pouca coisa. Um filme brasileiro sem a fotografia de Walter Carvalho é como uma peça de teatro carioca sem a iluminação de Maneco Quinderé, um programa de TV moderno que não seja do núcleo de Guel Arraes, uma manifestação artística qualquer sem a cenografia de Gringo Cardia. Ou seja, uma raridade. E "Nelson Freire" é mesmo peculiar. Além de não ter Walter Carvalho na ficha técnica, é um documentário que não demonstra ter curiosidade em relação ao assunto que aborda.

Passados os 110 minutos de projeção, saí do cinema, sem saber onde mora Nelson Freire, sem saber se Nelson Freire grava discos, sem saber se Nelson Freire é casado ou solteiro! Convenhamos: é recato demais para um documentarista.

"Nunca quisemos fazer uma cinebiografia", já disse Moreira Salles. Tá limpo. Mas Moreira Salles queria fazer o quê? Para que não se cometa a injustiça de que nada sobre Nelson Freire é revelado, é preciso contabilizar as revelações do filme. Há uma carta que o pai de Freire escreveu ao filho lida por Eduardo Coutinho (Deve ser uma homenagem ao maior de nossos documentaristas. Afinal, Moreira Salles é uma alma sensível). Tem Nelson Freire fumando, bebendo Coca-Cola light e confessando que - tchan tchan tchan tchan - gosta de Rita Hayworth! E tem... olha, não tem mais muita coisa, não. E a equipe seguiu o pianista durante dois anos! Dizem que o artista só se descontraiu na última entrevista, no último minuto dos tais dois anos. Se o filme tivesse ficado pronto um mês antes, não sei o que ele iria mostrar. Não ia ter nem o vídeo da Rita Hayworth que, por sinal, ocupa boa parte dos 110 minutos.

"Nelson Freire" comete o pecado de achar que depoimentos de seu protagonista bastariam para traçar o seu perfil. O problema é que, ao falar, o pianista tem a fluência de um surfista. Ele emite um sujeito, engata num verbo mas se nega terminantemente a concluir com um predicado. Qualquer frase de Nelson Freire termina com reticências. "Eu sou... sabe?... eu... entende?". Bem, eu não entendi. Pode ser que almas mais sensíveis tenham captado a sua personalidade. Eu sou do tempo em que documentários não tinham o direito de ser reticentes. Sou insensível demais para um filme de João Moreira Salles sem a fotografia de Walter Carvalho.

Ah... mas tem os concertos. É verdade. Nada que uma ida de vez em quando ao Municipal ou à Sala Cecília Meirelles não resolva. E, melhor, com a oportunidade de ver Nelson Freire ao vivo. Mas o som do Espaço Unibanco 3 é impecável e a interpretação do Concerto n 2 de Rachmaninoff é mesmo sensacional. As almas sensíveis que andam tecendo loas ao filme – o bonequinho do GLOBO, por exemplo, deu piruetas, gastou duas caixas de Kleenex e aplaudiu de pé - estão apaixonadas por Gluck. Até ontem, elas só ouviam Os Tribalistas. Agora, descobriram Gluck! Mas que Nelson Freire não se entusiasme. Platéias pop costumam ser volúveis. Talvez seja este o objetivo de "Nelson Freire": levar para as grandes platéias do cinema a arte que só é ouvida em salões de música clássica.

Tecnicamente, um filme brasileiro é capaz de atingir 3 milhões de espectadores. Foi esta a marca de "Cidade de Deus". É para este número que se encaminha "Carandiru". Mas, vem cá, no Rio, o documentário teve o espetacular lançamento que levou uma cópia do filme para o Instituto Moreira Salles e outra para o Espaço Unibanco 3. Juntas, as duas salas somam 222 (102 no Espaço, 120 no Instituto) poltronas. Mas são quatro sessões por dia no Instituto e cinco no Espaço. Se todas lotarem, "Nelson Freire" será assistido a cada dia por 990 espectadores. Com uma semana em cartaz, o tempo mínimo de uma temporada cinematográfica, e lembrando que a salinha do Moreira Salles não tem sessões às segundas-feiras, teremos 6.450 espectadores em uma semana. Mais ou menos três lotações do Teatro Municipal. Pelo visto, popularizar a arte de Nelson Freire não é bem o objetivo do filme. Este "Nelson Freire" está mais para "Lara" do que para "Carandiru".

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