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domingo, 4 de janeiro de 2004

Por falar nisso

Já que o assunto é "O Senhor dos Anéis", acho que já deu tempo de a maioria ver o "Retorno do Rei", de maneira que se pode comentá-lo sem estragar a surpresa. Novamente tenho que fazer um esclarecimento: li o livro pela primeira vez há quase trinta anos e não me canso de relê-lo. Vale também lembrar minha opinião sobre os dois episódios anteriores no cinema:

A Irmandade* do Anel: Gosto do filme. O diretor Peter Jackson tirou passagens importantes (Tom Bombadil e o espírito da sepultura) e simplificou situações (a fuga de Frodo do Shire*, o Conselho de Elrond e os motivos que levam Aragorn a não ocupar o trono), mas essas alterações não influíam demais no andamento da história e tornavam o filme mais ágil. Discordo do meu irmão Gil e acho que o perfil dos personagens foi razoavelmente preservado.

As Duas Torres: Detesto figadalmente. Neste, Jackson inventou situações esdrúxulas (elfos na batalha do Elmo, Aragorn brigando com Legolas, Frodo brigando com Sam etc.), e deturpou feio quatro personagens: Theodén, que passa a ser um isolacionista, Elrond, que despreza os humanos (apesar de ser meio-humano), Faramir, que vira um pau mandando, e, a mais grave, Barba-de-Árvore*, que aparentemente ignora a destruição que Saruman promove em sua floresta.

Já o filme novo exige uma análise dupla. Por um lado, é um dos melhores filmes de ação épica que já vi. A batalha de Pelennor é, na minha modesta opinião, a mais impressionante da História do cinema. A concepção de efeitos especiais nunca mais vai ser a mesma depois do trabalho magnífico da equipe de Jackson. Além disso, ele consegue arrancar excelentes performances até mesmo de atores sofríveis, como Viggo Mortensen.

E Shelob*... Graças à computação gráfica, a equipe de Jackson criou a mais monstruosa aranha de todos os tempos. Anteriormente, aranhas eram modelos mal feitos e mal articulados, como em "A Mosca da Cabeça Branca" ou justaposições de imagens que não permitiam interação entre os personagens, como em "O Incrível Homem que Encolheu". Agora, não. A aranha tem todos os movimentos reais e, na tela, interage o tempo todo com Frodo e Sam. Para alguém com uma aracnofobia igual à minha, foi um momento de terror puro.

Por outro lado... Jackson nem introduziu muita coisa, mas tirou partes fundamentais da história. A primeira foi o confronte entre Gandalf e Saruman. É o momento em que fica claro o tremendo aumento do poder daquele. Além disso, o texto de Tolkien teria ficado magistral nas vozes de Ian McKelan e Christopher Lee. Mas cena inteira foi limada.

Mas o pior foi a volta dos hobbits para casa. Tolkien concebeu sua história como um círculo. Ao voltarem da guerra, Frodo, Sam, Merry e Pippin encontram seu país destruído e tomado por criminosos. Cabe a eles, com o conhecimento, a força e a confiança que adquiriram, sublevar o povo e expulsar os bandidos. O confronto com o líder deles (se você não leu o livro, não vou entregar quem é) é um fecho perfeito. Mas Jackson limou tudo.

Pena. Vamos ver se isso melhora na inevitável versão extendida.

* Caso alguém estranhe esses nomes, eu me recuso a usar as invenções da infeliz tradução na última edição brasileira. Lenita Maria Rimoli Esteves pode ser mestre em tradução, mas não entende chongas de Tolkien e usou critérios no mínimo discutíveis. A culpa nem é dela, mas de quem escalou uma especialista em Joyce para traduzir "O Senhor dos Anéis". São estilos e até filosofias literárias completamente diferentes.

Tolkien era lingüista. Ele inventou idiomas, mas, ao contrário de Joyce, não tinha qualquer pretensão de reinventar o inglês. Ele trabalhava com a lógica das línguas germânica, que permitem justapor duas palavras, formando uma terceira. Daí Imladris, que fica num estreito vale, chamar-se Rivendell (riven=fenda e dell=vale), literalmente "Vale Fendido" ou "Vale da Fenda". Vai Dona Lenita Maria e tasca "Valfenda", que serve apenas de túmulo da eufonia.

Uma melhor ainda: o cavalo cinzento (não branco) de Gandalf movia-se tão rapidamente que mal podia ser visto. Quando corria, as pessoas percebiam somente uma sombra passando. Daí ser chamado de Shadowfax, algo como "Feixe de Sombra" ou "Facho de Sombra" (escolhido pela excelente tradução portuguesa). Nossa especialista em Joyce tirou (sabe-se lá de onde) Scadufax. Shelob ("aranha fêmea" em inglês arcaico) virou Laracna, e por aí vai.

Sinceramente, se eu fosse dono de curso de inglês, faria um propaganda com essas porcalhadas e diria "venha estudar conosco para nunca mais aturar tradutores pirados".

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