Total de visualizações de página

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2004

Carinho pela metade

Não que eu seja hipocondríaco, mas tenho carteirinha de sócio atleta da Santa Terezinha, uma casa de saúde perto da minha casa. Durante o Carnaval eu dei uma meia-trava na emergência para ver uma tendinite no pé*. Enquanto aguardava na sala de espera cheia, sentou-se ao meu lado uma moça passando mal, acompanhada de outra garota.

Não precisou muito para eu notar que era um casal. Não só pelo papo doméstico, mas pelo extremo carinho que uma parecia demonstrar pela outra. Se não estivesse em casa cuidando da Luísa (“um apetite voraz numa ponta e nenhuma responsabilidade na outra”), Cristina estaria comigo fazendo gestos de carinho praticamente iguais.

"Praticamente" porque entre elas havia sempre algo contido. Era o carinho no rosto que prenunciava um beijo que não acontecia, por exemplo. Fiquei pensando como deve ser triste precisar esconder o próprio carinho. A rigor, elas não fariam nada que um casal hétero não fosse fazer num lugar público. Mas certamente agravariam o risco cardíaco das velhotas que esperavam para medir a pressão.

"Tá, Leo. Cê tá com essa liberalidade toda porque eram duas mulheres, e homem se amarra em colação de velcro. Se fossem dois marmanjos se carinhando, cê ia achar o fim da picada." Pode ser. De qualquer forma, é triste constatar que os nossos preconceitos acabam maniatando as relações dos outros. Que as pessoas continuam tentando impor os próprios padrões sobre os outros. Não se trata de viver de acordo com seus valores, mas exigir que os outros vivam.

Lembro da foto de um protesto contra a ditadura em 68, na qual se lia num cartaz "Se vocês são fortes, abram as urnas". Será que esse povo tem tão pouca confiança nos próprios valores que precisa tirar da vista tudo o que é diferente deles? Será que a sexualidade do seu Zé e da dona Maria que freqüentam o encontro de casais da igreja vai pras cucuias se forem para a casa ao lado duas mulheres (ok, dois homens, se preferirem) que vivem juntas e felizes?

Pode parecer viagem, eu sei. Mas mesmo agora a direita cristã nos EUA quer uma emenda constitucional proibindo a união civil entre gays. O cerne da hipocrisia foi maravilhosamente capturado pela Onion: Suprema Corte de Massachusetts obriga todos os cidadãos a se casarem com gays. Quem ouve gente com Bush falar, acha que é isso, que a possibilidade de duas pessoas do mesmo sexo legalizarem sua relação torna obrigatório o homossexualismo. Ou que as igrejas seriam obrigadas a dar status de casamento (sacramento) a essas uniões civis.

O engraçado que é a extrema irresponsabilidade com que parte dos americanos trata o casamento (e a leviandade das leis sobre isso lá) não parece "desmoralizar a instituição". Britney Spears encher a cara, entrar numa capela e casar com um amigo por curtição – e anular o casamento no dia seguinte – desmoraliza muito mais do que um casal gay que vive junto há anos tentar regularizar sua situação.

Infelizmente hipocrisia e desinformação continuam a ser a melhor arma dessa gente.

* A tendinite no pé tem suas vantagens: permite-me não gostar de pagode e de “marcha-enredo” sem passar por ruim da cabeça.

Nenhum comentário: