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segunda-feira, 14 de março de 2005

De anencefalia e tetas em peixes

De anencefalia e tetas em peixes

Quando eu estava na faculdade (idade do layout lascado), tinha uma amiga judia que, por influência do irmão e da avó, adotou cada vez mais uma postura ortodoxa, incluindo as restrições alimentares. Um dia fomos ao McDonald's do Rio Sul e ela pediu um filé de peixe sem queijo, explicando-me que os judeus não podem misturar carnes e laticínios.

Curioso, fui pesquisar a origem dessa restrição ? muito antes de a Internet facilitar as pesquisas em geral. Depois de escavar Gênese e Levítico, fui achar a resposta em Êxodo 23:19: "não cozerás o cabrito no leite de sua mãe". Confesso que isso só me encucou mais. Se a lógica da restrição é essa, não haveria problemas em comer peixe com queijo ou leite. Afinal, as mães do bacalhau, da tainha e de todos os parentes destes não têm tetas e não produzem leite. Levei a dúvida a minha amiga, que respondeu um lacônico "a tradição manda não misturar, eu não misturo".

Lembro-me desse episódio e do apego de minha amiga ao dogma em detrimento da lógica que o inspirou quando vejo a campanha dos católicos para impedir o aborto de fetos com anencefalia. A idéia aqui não é discutir o direito ou não ao aborto como um princípio geral, ou a tentativa permanente dos cristãos de impor seus princípios ao resto da sociedade. Vamos ficar nesse caso específico.

Para quem não sabe, anencefalia é uma doença em que o feto não desenvolve abóbada craniana e cérebro. É 100% fatal. Tão logo se vê privado do sustento que o corpo da mãe fornece, a criança morre. É como um paciente sem atividade cerebral mantido vivo artificialmente por aparelhos. Está clinicamente morto. O caso do bebê é até mais grave, pois um milagre pode devolver a atividade ao cérebro do paciente, mas não criar um cérebro para o natimorto.

Entretanto, a Igreja combate o aborto desses fetos sob a alegação do direito à vida. A pergunta é: Que vida? No caso de um feto saudável, ele não tem condições de sustentar a própria vida, mas tem um potencial, é verdade. Mesmo portadores de problemas genéticos, como a Síndrome de Down, podem sobreviver e levar uma vida dentro de suas limitações. No caso da anencefalia, porém, não existe potencial de vida.

Quando a Igreja tenta impedir que uma mulher aborte um feto gerado por estupro ou portador de alguma deformidade, sempre pode argumentar que está defendendo o direito daquele feto à vida. Concorde-se ou não, é um argumento. Se não for abortado, aquele feto nascerá e vivera a vida que lhe couber. Agora, usar o mesmo raciocínio para obrigar uma mulher a carregar por nove meses um ser que já vai nascer clinicamente morto é um dogmatismo tão inconcebível quanto procurar tetas num salmão.

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