Total de visualizações de página

quarta-feira, 6 de agosto de 2003

Histórias de família IV

Meu avô é um sujeito essencialmente bom. Não quer dizer que não tenha defeitos, mas está sempre pronto a ser solidário. Nisso, claro, entra nas piores frias.

Uma vez estávamos almoçando eu, ele e minha avó num restaurante aqui da Tijuca e falávamos exatamente sobre isso. Ele falou que agora não se metia mais em roubada. Só ajudava instituições sérias, como um leprosário em Minas que mandava nota fiscal, fotos etc. etc... Nem bem ele terminou de falar isso e entrou no Jornal Hoje (a TV estava ligada bem ao lado da nossa mesa) uma chamada bombástica: “Estelionatária em Minas dava golpes abusando da caridade alheia”. Uma advogada tambiqueira (categoria infelizmente cada vez mais comum) arrancava dinheiro de solidários de todo o país dizendo representar um leprosário – tinha até nota fiscal fria e fotos de um hotel fazenda que dizia serem do hospital. Diante da cara de estupor do velho, eu e minha vó conseguimos nos segurar por 0,001 segundo antes de explodirmos numa gargalhada.

Mas a história em questão não é essa não. Aconteceu nos anos 50, quando ele trabalhava no extinto IAPB, lá na Graça Aranha, Centro do Rio. Ia ele para o Castelo tomar o ônibus para a Ilha quando foi abordado por um sujeito amarelo com dois meninos pequenos. O amarelo não é figura de linguagem, não. Segundo meu avô, o homem estava com a pele amarela, mesmo.

Dada a tonalidade do sujeito, seu João não estranhou quando o dito disse sofrer de hepatite e explicou seu drama. Viera do interior do Estado para uma consulta no Hospital dos Servidores e tivera que trazer os filhos. Trazia apenas o dinheiro da passagem de volta, mas, como a consulta atrasara muito, tivera que dar de comer aos pequenos. Com isso, não tinha dinheiro para voltar para casa.

Meu avô, já quase com lágrimas nos olhos, viu quanto tinha no bolso e achou que não dava para três passagens intermunicipais. Como o homem parecia estar nas últimas, mandou que ele sentasse nas escadas da Igreja de Santa Luzia (na rua homônima) e foi parando os demais transeuntes para organizar uma coleta em prol do amarelo.

Eis que chega um guarda municipal aos berros perguntando que palhaçada era aquela, dizendo que ia levar todo mundo pro distrito etc. Assustado, o amarelo e sua prole deram no pé. Revoltado com a insensibilidade da otoridade, meu avô chamou o guarda às falas.

“Como é que você faz isso? O homem estava doente!!!”

“Que doente que nada, doutor. Aquilo é um trambiqueiro conhecido por aqui.”

“Você está louco? E a cor dele?”

“Passa o dedo na cara dele pra ver. Aquilo é maquiagem.”

O velho nunca se recuperou desse choque de realidade...

Nenhum comentário: